26 de dez. de 2011

Almas do outro mundo

Na minha aldeia, tal como em outras certamente, sempre houve almas do outro mundo que apareciam de noite nas ruas desertas a quem por lá se atrevesse a andar ou a alguém em específico.
Certamente que estranharão que em época natalícia venha aqui falar de almas penadas.
A verdade é que os serões e as conversas com os mais velhos fazem-nos lembrar daquilo que caracterizou o quotidiano do interior de Portugal em tempos de fome e miséria.Infelizmente, parece que esses tempos estão para voltar, quiçá regressem as almas penadas.
As histórias de seres estranhos que apareciam depois da meia-noite, e especialmente em noites de lua cheia, povoaram a minha infância e assustaram-me até muito tarde. 
Se de Verão brincávamos até altas horas na rua, de Inverno o frio levava-nos a recolher ao calor das lareiras. Efectivamente era uma vida de contrastes.
O Verão "obrigava" as pessoas a vir até ao fresco da rua, que contrastava com o interior das casas baixas e pouco arejadas aquecidas durante o dia pelo tórrido sol. Brincávamos até altas horas se fosse fim-de-semana ou férias. Em criança tentávamos apanhar as borboletas nocturnas e assustávamos as osgas que se atreviam a aparecer nas paredes ainda quentes. Com o crescimento e a entrada na puberdade/adolescência  trocámos as brincadeiras pelo sentar ao fresco a ouvir "quando o telefone toca".
O Inverno era a estação da hibernação. À medida que escurecia, e o frio se fazia sentir, atiçavam-se as lareiras e todos recolhiam à cozinha onde a lareira era o coração da casa. Era o tempo das histórias de"Era uma vez...", tempo de ouvir a repetição de episódios dos nossos familiares ou conhecidos. Era também o tempo em que o sobrenatural com "as almas do outro mundo" nos fazia tremer de medo, se não ali naquele instante pelo menos quando estivéssemos no quarto e o candeeiro a petróleo se apagasse (a sorte é que em famílias numerosas nunca se dormia sozinho). 
Os mais velhos afirmavam que sim, que já tinham visto ou então que conheceram alguém que viu e faziam aquele ar tão assustador que nenhum de nós se atreveria a sair de casa em noite de lua cheia, chegando a sentir admiração pelos mais afoitos, quase sempre os homens.
Estranhamente, todas as noites de lua cheia havia um ladrão corajoso que, mesmo correndo o risco de dar de caras com o "homem gigante que arrastava correntes", roubava pomares, hortas e rebanhos dos vizinhos.
Confesso a minha inocência: só muito tardiamente percebi que, em tempo de miséria, estas eram as estratégias para se puder roubar conhecidos sem se ser apanhado. 

2 comentários:

Anônimo disse...

A alma penada ainda ontem apareceu na televisão. Levava gravata verde fluorescente :-)))

Maria Soares disse...

Carlos,
os ladrões de gravata são os piores.